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Afropunk: muito além de um festival de música

Afropunk: muito além de um festival de música

O Afropunk é o maior festival de cultura negra do mundo e já teve edições nos EUA, França, Inglaterra, África do Sul e Brasil.

Muito se fala sobre o Afropunk, seja pelo visual únicos de seus participantes, seja pelas atrações que já passaram pelo festival, além da sua importância para a comunidade negra ao redor do mundo.

Mas afinal, como surgiu o festival? E porque ele se transformou em algo muito maior do que uma simples festa de bairro no Brooklyn?

O que é o Afropunk e como surgiu?

Afro-punk documentário
Capas do documentário Afro-punk. Imagem: reprodução.

O nome Afro-punk surgiu de um documentário lançado em 2003, de mesmo nome, que mostra a cena punk rock negra estadunidense e a dificuldade enfrentada por jovens negros para se inserirem em um ambiente completamente embranquecido.

O documentário de James Spooner, um jovem negro que curtia punk rock, explora a identidade desses jovens e o que é ser uma pessoa que se reconhece como negra e punk no underground.

No documentário conhecemos diversos jovens do underground que são parte da história do punk rock da metade dos anos 1990, nomes como Tamar Kali e Honeychild Coleman participam do filme. As duas são dois membros importantes do Sista Grrrl Riot, um grupo de mulheres negras que surgiu na década de 1990 em contraponto ao movimento Riot Grrrl, que era notadamente branco e de classe média.

Insatisfeitas por não se encaixarem no padrão de mulheres brancas do Riot Grrrl e por se sentirem sozinhas na cena underground, elas começaram a se apresentar junto com Maya Glick e Simi Stone em casas de show de Nova Iorque e assim surgiu o Sista Grrrl Riot, focado em mulheres negras que curtiam hard core e punk rock.

Elas acabaram criando um espaço seguro para outras pessoas negras punks, que também se sentiam excluídas, participarem da cena. Esse movimento gestou o que seria conhecido posteriormente como o Afro-punk nos anos 2000.

O documentário acaba reunindo as angústias e inquietações de uma geração que gostava de ser diferente, mas que ao mesmo tempo não se sentia parte importante da comunidade underground. Também figuram no filme Walter Kibby, vocalista do Fishbone, e D.H. Peligro, baterista do Dead Kennedys. 

Os depoimentos relatam situações como o não pertencimento dentro da própria família e da comunidade negra, que muitas vezes não entendia o visual diferente. A falta de referências estéticas, o que os levava a copiar o visual dos brancos da cena underground. A solidão dentro da cena também é parte importante desses relatos, muitas vezes eles eram as únicas pessoas negras nos shows.

O documentário também trata dos relacionamentos interraciais e o questionamento do que é ser uma pessoa negra que não se encaixa nos padrões racistas.

A participação de pessoas negras na cena punk também causava incomôdo nos brancos que não queriam discutir o racismo e a exclusão dentro da comunidade. Muitos músicos faziam letras sobre essas dificuldades, desde o racismo e opressão ao não pertencimento, o que incomodava a maioria branca que não conseguia entender as dificuldades de ser uma pessoa negra na cena underground.

Todas essas questões e dificuldades expostas no documentário evidenciaram a necessidade de se criar uma comunidade negra punk, longe do assédio e racismo de um espaço hegemônico branco e que fosse um espaço seguro para essas pessoas se expressarem.

Feito totalmente no espírito do DIY (faça você mesmo) da cultura punk, o documentário rodou diversos festivais de cinema dos EUA por dois anos e foi premiado no Toronto International Film Festival. Tudo isso acabou ajudando a formar uma rede de pessoas que queriam fazer parte de uma comunidade negra underground.

O site em que o filme ficou hospedado acabou se tornando uma sala de bate-papo na área dos comentários, e algumas pessoas se conheceram por ali. Em 2005, na comemoração da 100ª exibição do filme, Spooner convidou uma banda para tocar no fechamento do evento no Brooklyn, NY, a Stiffed, com Santigold nos vocais. 

Toda essa movimentação acabou formando uma pequena festa de bairro onde as pessoas que se conheceram na internet resolveram se reunir, o que trouxe um grande público de fora da cidade de Nova Iorque. Posteriormente Spooner se juntou com Matthew Morgan, então empresário da banda Stiffed, que viu potencial no evento e assim surgiram as primeiras edições do Afropunk. 

Com o tempo o festival foi crescendo e ficando conhecido, a festa de bairro estava ficando grande demais e nomes como Bad Brains já haviam se apresentado no evento. Em 2008 James Spooner acabou saindo da organização do festival e Morgan se uniu a Jocelyn Cooper, uma empresária da indústria musical, que já havia trabalho com nomes como Nelly e D’Angelo.

Afropunk. Imagem: reprodução

Sob nova direção o festival começou a atrair um público diferente e fora do underground, além de trazer artistas de peso do mainstream como Janelle Monáe, Solange, Lauryn Hill e Kanye West. O projeto se expandiu e criou edições em outros países como França e África do Sul, se estabelecendo como um festival de cultura negra global.

Hoje em dia o Afropunk, além de ser um evento musical importante, também representa toda uma força para a comunidade negra da diáspora que tem um lugar seguro para se expressar estética e politicamente. Muito além de um espaço onde as pessoas podem usar roupas legais e cabelos coloridos enquanto ouvem boa música, o Afropunk representa toda a luta de um grupo social que se sentia excluído apenas por serem quem eles queriam ser e gostarem de algo que não era feito para eles.

As polêmicas do Afropunk

Com proporções maiores, o crescimento do público e grandes nomes como atrações, algumas controvérsias começaram a surgir em relação a mensagem que o festival queria passar.

Afropunk. Imagem: reprodução

Outrora uma festa de bairro que buscava incluir pessoas negras que não tinham representação na cena underground do punk, o festival agora contava com edições em diversos países e começava a cobrar preços altos nos ingressos. Ele recebeu acusações de ser tornar um “Coachella negro”, com muito close e pouco conteúdo, priorizando a venda de ingressos para um público branco de classes mais altas. Além dessas discussões, diversas denúncias de abuso foram feitas por ex-funcionários do evento. O que veio à tona com a renúncia do editor-chefe do site do festival em 2018.

Algumas pessoas que foram importantes na fundação do evento e participaram do documentário que deu origem ao festival, também se posicionaram contra as políticas adotadas pela gerência atual e muitos diziam que a essência do festival, que buscava celebrar a inclusão e a negritude, havia se perdido. Além de apontarem também que o festival estava priorizando artistas grandes e já estabelecidos no mainstream no seu line up em detrimento de artistas menores da cena local.

De fato era impossível que um festival que cresceu tanto mantivesse todas as características que deram origem ao mesmo, no entanto a maior crítica era de que o festival, que havia sido feito por e para a comunidade negra, havia se tornado algo que apenas visava obter lucros para o seu cofundador Matthew Morgan. A organização do evento não se pronunciou sobre as críticas e denúncias e a edição seguinte em 2019 ocorreu normalmente.

O Afropunk atualmente

O Afropunk acabou se tornando um evento global que também passa pelo Brasil, o país com a segunda maior população negra do mundo. Aqui o festival acontece em Salvador desde 2021, se adaptando a identidade brasileira com artistas como Margareth Menezes, Ludmilla e Emicida.

Em 2019 o Festival trouxe ao Brasil uma pequena amostra com dois shows na Audio em São Paulo, com nomes como Linn da Quebrada, Black Pantera e Baco Exú do Blues.

Afropunk. Imagem: reprodução.

As edições do evento atraem um público crescente que vem influenciado pelo hype que se criou em torno do evento. A cena underground foi deixada de lado e o pop e hip hop acabaram dominando o festival que, hoje em dia, não tem quase mais nada de punk.

Na última década o Afropunk acabou se tornando um retrato da geração de tombamento, que busca na estética uma forma de se empoderar. Além de ser um evento musical, o festival se tornou uma experiência do que é ser um pessoa negra contemporânea que gosta de se expressar e não tem medo ser reconhecida como tal.

*Foto em destaque: Jessica Lehrman

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