Há quatro anos eu escrevi um texto sobre como o primeiro filme do Pantera Negra (Black Panther no original), protagonizado por Chadwick Boseman e dirigido por Ryan Coogler, mudou a forma como eu via e me inspirava no mundo, além do potencial que ele mostrou sobre narrativas protagonizadas por personagens não-brancos em grandes produções cinematográficas.
(Esse texto contem spoilers do filme)
Quatro anos se passaram e de lá pra cá muita coisa mudou. O filme do Pantera Negra se provou um grande sucesso de público e crítica levando diversas premiações e garantindo seis indicações ao Oscar, incluindo Melhor Filme, e levando pra casa os prêmios de Melhor Figurino, Design de Produção e Trilha Sonora.
Seu bom desempenho o transformou em um fenômeno cultural que abriu as portas para novas produções protagonizadas por atores não brancos como Podres de Ricos (Crazy Rich Asians no original) e recentemente A Mulher Rei (The Woman King), protagonizado por Viola Davis. Mesmo na Marvel, casa do Pantera Negra, filmes como Shang-Chi e produções como a série Miss Marvel se tornaram possíveis graças ao sucesso de Pantera Negra e a constatação de que as narrativas exclusivamente brancas não dominam mais o mundo.
Na época de sua produção ninguém esperava que um filme protagonizado e produzido em sua maioria por pessoas negras conquistaria tamanho sucesso e nem a cultura de dados que hoje move as grandes corporações conseguiu prever o tamanho sucesso que o filme faria.
Pantera Negra se tornou um marco no cinema e se converteu em um fenômeno cultural que ultrapassou as telas e mudou a vida de diversas pessoas pelo mundo.
Com tudo isso era natural que uma sequência do filme viesse o quanto antes, mas no meio do caminho o que ninguém esperava aconteceu: Chadwick Boseman, o protagonista do filme, que se tornou um símbolo para a comunidade negra, faleceu e o mundo ficou de luto. Em agosto de 2020 perdemos o nosso rei para o câncer.
Wakanda e a ausência do Rei
Após a trágica perda de seu protagonista a sequência do filme entrou em xeque, e depois de muitos contratempos e dificuldades, como a pandemia e problemas com o elenco, que levaram ao atraso da produção, além do luto de todos envolvidos no filme. Wakanda Forever finalmente estreou com a difícil tarefa de honrar Chadwick Boseman e dar continuidade ao seu legado.
Em seu primeiro teaser lançado na San Diego Comic-Con de 2022 a canção No Woman No Cry, de Bob Marley, interpretada pela cantora nigeriana Tems, carrega o luto e o sentimento de tristeza que permeia o filme e seus fãs.
Logo no começo do filme vemos o trágico destino do Rei T’Challa e a despedida do povo de Wakanda de seu líder, além de uma linda homenagem ao ator Chadwick Boseman. Impossível não chorar.
Um ano depois acompanhamos a personagem Shuri (Letitia Wright) e sua mãe Ramonda (Angela Basset) tendo que lidar com um reino sem protetor que precisa se defender das ameaças de outros países.
Colonização, imperialismo e alianças antirracistas
Ao revelar o seu segredo para o mundo Wakanda se torna alvo da ganância de países imperialistas que tem em sua história um passado de exploração, invasão e colonização de povos não brancos pelo mundo.
É muito simbólico que em uma reunião de nações seja a França o país denunciado por tentar roubar o vibranium de Wakanda, considerando o histórico exploratório dos franceses no continente africano. Já fica claro que o principal inimigo de Wakanda é o imperialismo e a ganância das nações ocidentais que em posse de um poder como vibranium usariam o mesmo para subjulgar outros povos, como já fizeram antes.
Na busca pelo vibranium eles acabam despertando a fúria de outro povo que vive isolado e busca preservar suas tradições e riquezas da violência e ganância dos Estados Unidos e europa.
Ao introduzir um outro povo que escapou da colonização e pôde se desenvolver e preservar as suas tradições mantendo-as intocadas, assim como Wakanda, se assemelhando em diversos pontos, usando a posse do vibranium como fio condutor das semelhanças.
O filme nos convida a imaginar como seriam essas utopias intocadas pela colonização destruidora e também nos faz pensar em como se dariam essas alianças contra forças que aqui se colocam em pé de igualdade contra um inimigo muito mais cruel (sim estou falando dos brancos).
Namor (Tenoch Huerta), o antagonista, tem ótimos motivos para querer proteger Talokan do povo da superfície e se aliar com Wakanda. Assim como a sua fúria e quando sente-se traído por eles se justifica, mas talvez o seu grande erro seja achar que o conflito é a única forma de provar a sua força e proteger o seu povo.
No fim ele acaba conseguindo a sua aliança, mas com um gosto amargo. Como no antagonismo do primeiro filme Shuri e Namor querem as mesmas coisas, mas com pensamentos diferentes de como obtê-las.
Usar povos africanos e indígenas para discutir colonização e alianças antirracistas foi o maior acerto do filme, assim como toda a construção desses povos no nosso imaginário, mostrando o seu poder, diversidade e tradições. Afastando assim as representações pejorativas que se repetem na grande mídia.
É interessante notar também as referências ao Haiti no filme, único país que conseguiu se libertar da escravidão por uma revolução de escravizados, liderada por Toussaint Louverture e Jean-Jacques Dessalines. Toussaint que é o nome de um personagem importante na trama.
A nova Pantera Negra e o protagonismo feminino
A Shuri de Letitia Wright no primeiro filme é uma adolescente que rouba a cena a cada aparição, cheia de carisma e energia e com pouco respeito pelas tradições de Wakanda.
Na sequência de Pantera Negra a personagem inicia o filme abalada e passa por uma jornada de luto, confusão e vingança até chegar ao entendimento de quem ela realmente é. No meio de tudo isso ela acaba assumindo o manto de Pantera Negra e agora tem que lidar com essa responsabilidade.
A rainha Ramonda de Angela Basset por outro lado ganha mais espaço e carrega o filme, preenchendo a tela com a sua presença nas falas mais incisivas da produção. Danai Gurira e Lupita Nyong’o também continuam mantendo o nível das suas personagens alto, e aqui fica destaque para a luta de Okoye na ponte, que lembrou as lutas corpo a corpo do primeiro filme. Okoye acaba passando por uma história paralela que espero possa ser melhor desenvolvida em série sobre Wakanda.
Também não podemos esquecer da participação de Riri Willians, a Coração de Ferro, que em breve terá uma série pra chamar de sua, mas aqui cumpre bem o seu papel de novata nesse universo. Esse é o aceno para as novas gerações que serão inspiradas por personagens como a dela.
Se no primeiro filme a presença dessas mulheres foi uma grata surpresa em uma narrativa que focava em um protagonista masculino, mas que também dava espaço para as mulheres brilharem. Agora a responsabilidade é delas de chorar os mortos e preservar do futuro da nação dividindo o protagonismo em alguns momentos.
A única crítica fica para a personagem Aneka (Michaela Coel) que acabou fazendo figuração de luxo e teve pouco desenvolvimento na trama (espero ver mais dela no futuro).
As motivações de Namor
O anti-herói/vilão Namor, interpretado pelo excelente Tenoch Huerta (pronuncia-se “Tenoti”), foi um dos primeiros personagens da Marvel nas HQs e que finalmente teve sua estreia nos cinemas. Aqui ele é o líder da nação submersa de Talokan, um povo indígena que fugiu da colonização espanhola usando o vibranium e se isolou no fundo do mar. Quando criança Namor presenciou o seu povo sendo explorado e escravizado pela colonização espanhola no México e jurou protêge-los.
Assim como Killmonger no primeiro filme as motivações de Namor são válidas. Se no primeiro filme é possível fazer uma comparação com o racismo e os negros da diáspora que foram subjulgados pela escravidão e perderam a sua identidade e ligação com o continente de onde foram sequestrados. Em Wakanda Forever também podemos pensar em como alianças antirracistas poderiam se formar por aqueles que são oprimidos e precisam encontrar formas de se proteger e prosperar juntos.
Talokan é um paralelo interessante do afrofuturismo de Wakanda e um exemplo para as populações latino americanas. Aqui é importante notar que Talokan é uma representação indígena mesoamericana e não necessariamente “latina” como os americanos costumam classificar as populações que habitam as américas. Essa noção de “latino” abrange brancos invasores, indígenas e negros que vieram para esse continente contra a sua vontade, jogando tudo no mesmo balaio.
É preciso tomar cuidado com as classificações que vem do opressor e tiram a responsabilidade de muitos brancos que se dizem “latinos” pra mascarar os seus privilégios.
Mas Talokan é sim uma ótima representação para o latinos que descendem desses povos, principalmente na cultura mexicana. Tenoch Huerta explica essa representação nesse vídeo promocional.
Wakanda para sempre
A sequência do Pantera Negra tinha a difícil missão de lidar com o luto de toda uma comunidade que foi afetada pela perda de alguém como Chadwick Boseman, que representava esperança, honra e amor, e que me inspirou a conseguir sonhar com um futuro melhor para os meus. Além de apresentar novos personagens e uma nova sucessora do manto de Pantera Negra.
Não era tarefa fácil, mas o filme conseguiu lidar com essas questões ao mesmo tempo em que enriqueceu ainda mais um universo com representatividade indígena e latina.
Os figurinos de Ruth E. Carter continuam impecáveis e a trilha sonora de Ludwig Göransson acrescenta uma camada a mais de profundidade a narrativa, principalmente em Talokan. A música tema Lift Me Up interpretada pela nossa amada Rihanna, um hino que nos permite sentir a dor da perda e ao mesmo tempo honrar o nosso rei, é a cereja no bolo de uma produção que também se destaca pela excelência em todos os âmbitos, desde atuações ótimas até uma produção impecável.
Era muito difícil repetir o feito do primeiro filme, mas Ryan Coogler conseguiu criar uma narrativa que honrou o legado de Chadwick Boseman e abriu portas para um futuro ainda mais brilhante.
Pantera Negra não é apenas mais um filme da Marvel, ele se tornou um fenômeno cultural e parte de uma comunidade que se inspira e reflete sobre as mensagens do mesmo e em suas representações e questionamentos que vão além da comunidade negra da diáspora. É por isso que Wakanda é para sempre.