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High Fidelity é a série para mulheres negras que amam música

High Fidelity é a série para mulheres negras que amam música

Zoë Kravitz em High Fidelity

A série High Fidelity do Hulu é protagonizada por Zoë Kravitz como Robyn “Rob” Brooks, a dona e uma loja de discos no Brooklyn em Nova Iorque que lista os seus cinco piores términos.

A mais recente adaptação do livro High Fidelity de Nick Hornby, para o audiovisual veio em formato de série e dessa vez mudando o gênero, raça e sexualidade do protagonista Rob Gordon. Uma mulher negra bissexual assume os holofotes e lista os seus cinco piores términos ao longo de 10 episódios.

A série foi criada por Veronica West e Sarah Kucserka e o autor Nick Hornby também foi um dos produtores da série.

Zoë Kravitz em High Fidelity. Mulher negra debruçada sobre uma pilha de LPs.
Zoë Kravitz como Rob Brooks. Imagem: reprodução.

Além da mudança do protagonista, os personagens coadjuvantes também estão mais interessantes do que a dupla de caras brancos que acompanhava Rob no livro e no filme dos anos 2000 estrelado por John Cusack como Rob Fleming e tendo Jack Black e Todd Louiso nos papéis de Barry e Dick respectivamente.

Agora temos Da’Vine Joy Randolph e David H. Holmes como Cherise e Simon, uma mulher negra gorda e um cara gay, como amigos de Rob, todos igualmente apaixonados por música e cultura pop.

Zoë Kravitz, David H. Holmes e Da’Vine Joy Randolph. Imagem: reprodução.

Os dramas e experiências que envolvem relacionamentos são temas universais que qualquer um pode se identificar, mas durante muito tempo esse tema foi dominado por apenas um grupo identitário dominante: homens e mulheres brancos heterossexuais.

Na mais recente adaptação do livro todos os aspectos que envolvem os dramas do protagonista ainda estão lá, mas sob a ótica de uma mulher negra e isso faz muita diferença.

Tirar o monopólio de temas universais e apresentar diferentes visões de mundo e por consequência de personagens, enriquece e humaniza personagens que antes ficavam de lado em narrativas pobres extremamente focadas na supremacia branca da mídia.

Quando entendemos que mulheres negras também são seres falhos, confusos, inseguros e também sofrem com um término, desmitificamos o mito da mulher negra forte, por exemplo.

High Fidelity tem muitas coisas interessantes ao longo dos seus 10 episódios e seguindo a temática da protagonista aqui vai o nosso top 5 pontos mais importantes da série:

O conceito de “Girl Lixo” e Rob em High Fidelity

Imagem: reprodução.

Apesar de alguns fãs nostálgicos (geralmente homens brancos de meia idade) do filme de 2000 e do livro acharem que Rob era um cara nerd legal, na verdade ele era um grande idiota que tinha dificuldades nos seus relacionamentos e ficava obcecado pelos pequenos detalhes que não deram certo. Culpando desde o destino até fatores externos pela bagunça que ele era.

Na série a personagem de Zoë Kravitz também não é muito diferente disso, ela pode ser considerada a versão feminina do que chamamos hoje em dia de “Boy Lixo”, mas ver a bagunça que a protagonista é pela sua ótica é um dos fatores importantes da série e grande ponto de virada em relação ao protagonista masculino original.

Enquanto a sua versão masculina é um cara nos seus trinta e poucos anos obcecado por saber o que deu errado em sua vida enquanto tenta recomeçar. A Rob atual é uma mulher no final dos seus vinte anos igualmente obcecada por saber onde ela errou no passado, mas o que diferencia os dois é o ponto de vista.

Zoe Kravitz e Thomas Doherty em cena de High Fidelity. Imagem: reprodução.

A Rob do ponto de vista masculino seria descrita como alguém antipática, que trai e é egoísta, uma típica “vadia” das narrativas masculinas. Pela ótica dela vemos como ela chegou ao ponto de ser essa pessoa perdida que não sabe bem o que quer e acaba deixando um cara legal na mão por causa da sua insegurança e obsessão pelo passado.

Além de não prestar muita atenção em seus amigos porque está focada demais nas besteiras que ela fez. Conseguimos perceber o quanto de complexidade a personagem carrega apenas no fato de não ser uma mulher perfeita e se permitir errar mais de uma vez e ainda insistir no erro.

Essas caraterísticas eram permitidas apenas aos personagens masculinos que ainda levavam a fama de “cara legal” por alguns enquanto para mulheres esse comportamento as definia como megeras e vadias.

Atualmente personagens femininas que se permitem falhar e serem uma “bagunça” mostram o quanto de humanidade esse tipo de personagem ganhou ao longo dos anos, especialmente quando se fala em mulheres negras.

Séries como Insecure, Ela Quer Tudo, I May Destroy You e High Fidelity dão permissão para as suas personagens não serem perfeitas, mas sim humanas e como tal cheias de falhas, inseguranças, medos e dúvidas.

Mulheres negras também amam música e cultura pop

Da’Vine Joy Randolph como Cherise em cena de High Fidelity. Imagem: reprodução.

Apesar de ser fiel ao livro em alguns pontos, mas mudando a localização da lojas de discos e o cenário de Londres para Nova Iorque, a série dá liberdade para a criação de um tipo de personagem pouco explorada pela cultura pop e muitas vezes negado a mulheres negras: a mulher negra fã de cultura pop.

Rob e seus amigos conseguem listar quais são as melhores músicas sobre qualquer assunto, de masturbação a términos e o simples ato de criar uma playlist é tratado como uma forma de arte pela protagonista. Além de ser obcecada por música, ela também é uma colecionadora compulsiva e a sua loja discos se torna um espaço quase sagrado.

Zoë Kravitz como Rob em cena de High Fidelity. Imagem: reprodução.

Cherise também não é diferente de Rob com o adendo que além de entender muito de música ela também quer formar uma banda e escrever suas próprias canções. O que adiciona uma camada a mais para a personagem que é de longe uma das mais interessantes da série e merecia muito mais atenção e destaque na primeira e agora única temporada de High Fidelity.

A forma como essas personagens são colocadas na série e como elas enfrentam o preconceito que surge em algumas situações específicas mostra o quanto ainda falta uma representação mais aprofundada desse tipo de personagem.

Quando não estão presas a algum estereótipo negativo, mulheres negras muitas vezes são representadas como coadjuvantes sem história anterior e sem nenhum interesse específico, sendo rasas na narrativa ou servindo de suporte para a protagonista branca.

Mostrar que não existe uma única forma de ser negro no mundo é o que torna essa produção interessante.

A diferença entre Rob e Cherise

Zoë Kravitz e Da’Vine Joy Randolph em cena de High Fidelity. Imagem: reprodução.

Cherise e Rob, apesar de serem duas mulheres negras fãs de música, são tratadas e vistas de maneira diferente no mesmo espaço em que frequentam.

Enquanto Rob é a garota birracial tatuada e magra que é o centro das atenções, Cherise é uma mulher negra de pele escura e gorda que quase cai no estereótipo da angry black woman pela forma como fala e interage com as outras pessoas, mostrando as vezes uma personalidade exagerada e quase caricata. Talvez uma das maiores falhas da série.

E apesar de Rob e Simon terem espaço para listarem os seus piores términos de relacionamentos, isso nem é mencionado no arco de Cherise. O que sabemos é que ela quer montar uma banda punk inovadora.

Na tentativa de encontrar membros para o seu projeto ela é rejeitada pela sua aparência e fica a dúvida se o mesmo aconteceria com Rob por exemplo. E mesmo quando parece que a história dela vai de fato acontecer isso não é mostrado.

Da’Vine Joy Randolph como Cherise em cena de High Fidelity. Imagem: reprodução.

Uma personagem como Cherise é um prato cheio para questionarmos o racismo e misoginia desse meio e de quebra vermos uma mulher negra fã de rock entre outros estilos que passa longe dos estereótipos criados para ela se encaixar. A certeza que fica é que a personagem de Da’Vine Joy Randolph merecia e tinha potencial para mais.

Queremos mais casais negros

Zoë Kravitz e Kingsley Ben-Adir em cena da série. Imagem: reprodução.

O tema central da série são os relacionamentos passados de Rob, em especial o seu último término com um cara chamado Mac (Kingsley Ben-Adir). Mas apesar do casal central ser entre duas pessoas negras algo ficou faltando na série.

Kingsley Ben-Adir, o ator que interpretou Mac, em entrevista ao Sunday LA Times, chegou a elogiar o fato da série não repetir estereótipos raciais em seus personagens: “Éramos apenas duas pessoas negras apaixonadas e nunca falamos sobre isso. É importante para todas as pessoas ver os negros representados de uma forma que seja como, ‘Somos apenas normais, apenas fazemos coisas normais também.’”

Apesar desse ser mais um ponto positivo da série é importante apontar o colorismo e a falta de mais casais negros em relacionamentos saudáveis. Isso é algo recorrente em produções que tendem a dar protagonismo a personagens negros, mas que não querem cair num nicho específico criado pela própria mídia que coloca séries com elenco majoritariamente negro numa mesma caixa.

Kingsley Ben-Adir e Dana Drori em cena da série. Imagem: reprodução.

Fora o casal Rob e Mac, a série toda é focada em relacionamentos interraciais que nós já vimos em produções como Scandal, Euphoria e recentemente em Bridgerton. O próprio casal central, após se separar encontra a estabilidade em outros relacionamentos com parceiros brancos. Além do fato da mãe de Rob ser branca e nunca ouvirmos falar de seu pai.

A única personagem negra de pele escura é Cherise e já apontamos acima como a série falhou com ela.

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Num primeiro momento pode parecer uma observação pequena mais é necessário cada vez mais reforçar como mídia usa o colorismo a seu favor, usando de uma suposta “representatividade” para reafirmar os velhos padrões da supremacia branca na cultura pop atual. Ainda mais quando os criadores são pessoas brancas. É nítida a diferença de produções com pessoas negras também atrás das câmeras.

Não custa repetir que séries como Insecure e I May Destroy You fazem um excelente trabalho em quebrar o colorismo ao focar em um elenco majoritamente negro de pele escura e se colocar como um produto para todos os públicos ao abordar temas universais e muitas vezes delicados, mas centrados em personagens que muitas vezes não são o padrão estético que a mídia impõe. Dando uma substância narrativa considerável a eles.

Queremos mais casais negros nessas produções e nisso High Fidelity falhou.

As referências musicais de High Fidelity

Zoë Kravitz como Rob em cena de High Fidelity. Imagem: reprodução.

É claro que não poderíamos deixar de fora a trilha sonora de High Fidelity.

Tão importante quanto a protagonista a trilha faz os amantes de música entrarem num estado de puro êxtase e nostalgia, mas não só isso. As referências musicais vão além das playlists e camisetas de bandas. Se os relacionamentos são o tema central a música é a forma como esses sentimentos são expressos.

Qualquer fã de clássicos do rock, punk, blues, R&B e música pop vai se identificar e ficar igualmente interessado pelos diálogos do trio de amigos. Temos uma participação mais que especial de Debbie Harry, vocalista do Blondie, em um episódio e uma referência ao músico Jeff Buckley em um dos namorados de Rob. Além de referências aos clássicos, nomes atuais também marcam presença na trilha sonora impecável.

Ouça a playlist oficial:

Os figurinos também são pura inspiração, como as camisetas vintage de bandas como Beastie Boys e Misfits. Também temos uma variedade de LPs de fazer inveja a qualquer colecionador, David Bowie e Michael Jackson são algumas das raridades a venda na loja de Rob.

A princípio a loja de discos de Rob pode parecer algo fora do nosso tempo e produto da nostalgia, onde serviços de streaming dominam o cenário da indústria musical, mas na verdade ela vai de encontro com a tendência de aumento de venda LPs e fitas K7 que acontece atualmente. Nunca foi tão do nosso tempo comprar LPs. E de certa forma a série acaba sendo uma bela homenagem a música.

Ouça a trilha sonora original:

Por que High Fidelity foi cancelada?

Zoë Kravitz, David H. Holmes e Da’Vine Joy Randolph. Imagem: reprodução.

Apesar de ser sucesso de crítica e ter uma recepção boa do público, a notícia do seu cancelamento surpreendeu a todos.

Depois do anúncio do cancelamento surgiram informações de que a segunda temporada focaria mais em Cherise e na sua história anterior, assim como nos seus relacionamentos. O que nos faz lamentar ainda mais o fim de High Fidelity.

Zoë Kravitz chegou a criticar publicamente o canal Hulu por ter cancelado a série: “Tudo bem. Pelo menos Hulu tem uma tonelada de outros programas estrelados por mulheres negras que podemos assistir. Ah, espere.”

E de fato High Fidelity vai fazer muita falta quando pensamos nas possibilidades que segunda temporada traria para essas personagens.

É difícil encontrar uma resposta para o cancelamento, alguns dizem que foi a baixa a audiência, mas podemos especular que a falta de protagonismo negro em um canal como Hulu, que tem séries como The Handmaid’s Tale, pode dar uma pista do porque a série foi cancelada.

Os 10 episódios de High Fidelity estão disponíveis no canal Starzplay da Amazon Prime.

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