No livro No Seu Pescoço, da escritora nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie, refletimos sobre as questões da vivência africana pelo olhar da autora, que também já viveu situações como as retratadas no livro. Dividido em doze contos, ele fala de racismo, colorismo, colonialismo, machismo, relações familiares, política, violência policial, misticismo e a experiência de ser um imigrante africano nos EUA.
No seu pescoço (The Thing Around Your Neck, no original) foi publicado em 2009 nos EUA, mas só chegou aqui no Brasil em 2017, lançado pela editora Companhia das Letras. São contos protagonizados por homens e mulheres africanos, que através de suas histórias nos dão um panorama da experiência de ser um cidadão nigeriano no mundo.
O conto que mais se destaca é o que dá nome ao livro. Narrado em segunda pessoa, ele fala da vida da jovem universitária Akunna, que consegue o tão sonhado Green Card e deixa a Nigéria na esperança de conseguir estudar nos EUA. Morando com o seu tio, ela percebe que as coisas não vão ser tão fáceis quanto pareciam ser. Quando começa a trabalhar em uma lanchonete ela conhece um americano branco e inicia um relacionamento com ele.
Junto com Akunna entendemos como é ser uma mulher negra africana imigrante nos EUA e como é a adaptação à vida daquele novo lugar. Vivendo um relacionamento interracial na América, ela percebe os olhares de reprovação e preconceito com a sua relação. Ela mesma entra em conflito com o seu namorado privilegiado, que não percebe o quanto é diferente dela.
Ele pode se dar ao luxo de não querer estudar e recusar uma viagem para o Canadá porque não se dá bem com os seus pais, enquanto Akunna não tem dinheiro para visitar a sua família na Nigéria e tem que trabalhar ao invés de seguir a carreira universitária que tanto sonhava.
“(…) Ele disse que queria muito conhecer a Nigéria e podia comprar passagens para vocês dois. Você não queria que ele pagasse para você visitar seu próprio país. Não queria que ele fosse à Nigéria, que a acrescentasse à lista de países que ele visitava para admirar-se com as vidas dos pobres que jamais poderiam admirar a vida dele.
(…) Pela reação das pessoas, você sabia que vocês dois eram anormais – o jeito como os grosseiros eram grosseiros demais e os simpáticos eram simpáticos demais. As velhas e os velhos brancos que murmuravam e o encaravam, os homens negros que balançavam a cabeça para você, as mulheres negras com pena nos olhos, lamentando sua falta de autoestima, seu desprezo por si mesma. Ou as mulheres negras que davam sorrisos rápidos de solidariedade; os homens negros que se esforçavam demais para perdoar você, dizendo oi para ele de maneira excessivamente óbvia; os homens e mulheres brancos que diziam “Que casal bonito” num tom alegre demais, alto demais, como se quisessem provar para si próprios que tinham a mente aberta.
Mas os pais dele eram diferentes; quase fizeram você acreditar que era tudo normal. A mãe disse que ele nunca tinha apresentado uma garota para eles, com exceção daquela que levara ao baile de formatura do ensino médio, e ele deu um sorriso forçado e apertou sua mão.”
– Trecho do livro “No seu Pescoço”
Os outros contos transitam entre a Nigéria e os EUA e, apesar de serem histórias fechadas, existe um fio narrativo que une todas elas: a multiplicidade de experiências em ser um cidadão africano no mundo. A forma como as vivências são diversas e ao mesmo tempo tão parecidas é o que nos faz criar empatia com as histórias e nos colocar no lugar dos mesmos.
No conto Na segunda-feira da semana passada conhecemos Kamara, que acabou de imigrar para os EUA. Após um longo período afastada de seu marido, ela começa a trabalhar como babá para um casal interracial. Mesmo tendo um mestrado e ter qualificação, esse é o único emprego que ela consegue. Kamara acaba sendo objetificada sexualmente pelo casal e não percebe que ela é só mais uma distração para eles.
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O livro também discute o machismo da sociedade nigeriana. No conto Amanhã é tarde demais, conhecemos uma avó que privilegia o seu neto enquanto trata a sua neta, irmã do menino, de forma diferente, proibindo-a de subir em árvores e deixando ela comer por último, enquanto diz que ela precisa aprender a ser uma boa esposa. Tudo isso gera consequências graves para toda família. Em Réplica, a esposa de um homem rico que mora nos EUA começa a mudar o seu comportamento submisso quando descobre que o marido tem um amante na Nigéria.
Em Os casamenteiros, uma jovem se casa em um casamento arranjado com um homem que imigrou para os EUA. Mesmo o seu marido sendo um completo desconhecido, ela precisa conviver com ele para poder se estabelecer no país. O seu marido rejeita todos os costumes nigerianos na tentativa de parecer mais americano e ser melhor aceito no país. A autora também toca na questão do colorismo na sociedade nigeriana, quando demonstra que alguns personagens são mais bem-vistos por terem a pele mais clara e as mulheres são consideradas mais bonitas do que as de pele mais escura.
Também entendemos um pouco da situação política da Nigéria, Chimamanda situa os seus personagens em conflitos que realmente existiram e ainda existem, mas não se dá ao trabalho de ser didática enquanto expõe as situações; somos inseridos na política do país com o olhar dos personagens. No conto Fantasmas, um professor universitário reencontra um amigo que ele pensava estar morto após uma revolta na universidade. E em Uma experiência privada, duas mulheres de etnias diferentes se conhecem durante um conflito étnico entre muçulmanos hausas e cristãos igbos. Em A embaixada americana, um mulher precisa fugir da Nigéria pra escapar da perseguição política sofrida por seu marido.
A autora também cita autores contemporâneos como Chinua Achebe, mas não se preocupa em explicar detalhadamente quem são. Assim como também não perde tempo explicando os fatos históricos de seu país. No último conto, A historiadora obstinada, conhecemos os efeitos da colonização inglesa e cristã na Nigéria e também somos apresentadas aos clãs que resistiram à invasão dos homens brancos, tudo isso pela ótica de uma família convertida pelos invasores e que foi perdendo a sua tradição e ancestralidade em troca da imposição dos costumes cristãos.
Nascida em Enugu, na Nigéria, Chimamanda é filha de professores universitários, assim como algumas de suas personagens, e também imigrou para os Estados Unidos para estudar aos 19 anos. Muito da autora pode ser visto em algumas das situações em que as personagens se encontram.
Em No Seu Pescoço exercitamos um outro olhar para os países africanos, quase sempre representados com a pobreza e a fome. Isso também é mostrado em um dos contos do livro, em Jumping Monkey Hill, onde uma escritora nigeriana participa de um workshop junto com outros autores africanos, e em determinado momento um inglês “estudioso” de cultura africana decreta que nenhum dos autores africanos sabia o que era a verdadeira África.
“O sul-africano se remexeu na cadeira. Edward mastigou ainda mais o cachimbo. Então, olhou para Ujunwa da maneira como alguém olha para uma criança que se recusa a ficar quieta na igreja, e disse que não falava como africanista de Oxford, mas como alguém interessado na verdadeira África, e não na imposição de ideias ocidentais sobre os loci africanos. A zimbabuense, o tanzaniano e a sul-africana branca começaram a balançar a cabeça enquanto Edward falava.
(…) A senegalesa explodiu em uma torrente de francês incompreensível e então, após um minuto de fala fluida, disse: ‘Eu sou senegalesa! Eu sou senegalesa!”
– Trecho do livro “No seu Pescoço”
A própria autora reforça a ideia de que precisamos deixar de lado a narrativa única sobre o continente africano; ela trabalha mostrando a diversidade cultural de seu país e a complexidade política da região, além de dar profundidade e personalidade às suas personagens. Ela mostra um país ainda ligado às tradições e ancestralidade, mas mesclado com os costumes e hábitos da modernidade e toda a complexidade que existe nessa relação.
Parece uma coisa meio óbvia, mas para muitos a África é uma única massa ligada pela fome e necessidade de cuidado dos estrangeiros. O que Chimamanda faz é nos levar para dar um passeio pelo seu país e nos apresentar toda a diversidade de costumes, pessoas, personalidades e ancestralidade que os estereótipos não nos permitem explorar.
No Seu Pescoço é um excelente livro e serve de porta de entrada para o trabalho da escritora, autora de sucessos como Americanah e Para Educar Crianças Feministas.
Se interessou pelo livro?
No seu pescoço
Editora: Companhia das Letras
256 páginas
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