Na última parte da nossa jornada vamos falar do papel da mulher negra no rock nacional, selecionei cinco nomes que vão do pop ao punk. Você vai conhecer o trabalho da cantora Mahmundi, o punk rock de Tati Góis da banda Útero Punk, o talento da headbanger Hanna Paulino, o indie rock de Héloa e o post rock da Natalia Munroe da banda Kali.
Antes de conhecermos as mulheres negras do rock nacional não podemos deixar de falar da representação da mulher negra nesse meio, se no resto mundo o gênero já não é muito inclusivo com mulheres, ainda mais de outras etnias que não seja o padrão branca europeu, no Brasil ele foi totalmente dominado pelos caras brancos. Da Jovem Guarda ao rock dos anos 80 o papel do negro no rock nacional sempre foi de coadjuvante, mesmo tendo nomes como Clemente dos Inocentes, o protagonismo nunca foi nosso.
Quase toda mulher negra que gosta de rock, metal, punk e etc. já ouviu que não tinha cara de “roqueira” ou que deveria estar escutando samba, pagode ou hip hop. Essa falta de identificação também se reflete na representação da mulher negra no rock brasileiro, ela serve como tema de músicas que ou objetificam o nosso corpo e reforçam estereótipos ou nos tratam com uma visão romantizada e muito pouco humanizada.
A música “Mulheres Negras” da banda Dead Fish, por exemplo, reforça uma visão romantizada do sofrimento da mulher negra, entre versos que falam de resistência e luta usam como exemplo o sorriso das mulheres negras que depois de sofrerem horrores se negam a chorar:
“(…) Mas então vamos lá,
lutar por um ideal.
Se viver é resistir,
então será…
E aí poderemos sorrir como mulheres negras,
que apesar de todo sofrimento se negam a chorar.”
Eu fico imaginando o cara que escreveu essa música achando que estava homenageando a força das mulheres negras, mas na verdade ele só estava reforçando a ideia errada de que nós mulheres negras somos mais fortes e aguentamos qualquer coisa e isso só serve para normalizar a violência que nós sofremos. Mulheres negras também são seres humanos que sentem dor e choram tanto quanto qualquer um.
É problemático quando uma banda formada por homens brancos resolve falar do sofrimento da mulher negra e usar isso como bandeira para a luta deles, na visão desses caras nós estamos sempre sorrindo, mesmo enquanto estão ferrando com a nossa vida.
Também temos essa música dos Paralamas do Sucesso chamada “Lourinha Bombril”:
“(…) Essa crioula tem o olho azul
Essa lourinha tem cabelo bombril
Aquela índia tem sotaque do Sul
Essa mulata é da cor do Brasil…”
Para se referir à características que são comuns a mulheres negras eles usam três termos racistas em uma tacada só. Em algumas análises dessa música é dito que ela trata da diversidade e miscigenação do povo brasileiro, mas a verdade é que ela não podia ser mais estereotipada, principalmente em relação ao corpo da mulher negra, em determinado trecho o autor ainda enfatiza o jeito como ela “samba”.
Como se esses dois exemplos não fossem suficientes, existiu uma banda nos anos 1980 chamada “Mulheres Negras”, porém a banda era formada por dois caras brancos, a dupla fazia um som característico de grupos da década, com letras irreverentes e sintetizadores. O nome dessa banda representa bem o papel da mulher negra no rock nacional: ela serve para dar nome à uma banda de dois caras brancos, mas não para fazer parte da cena. Esses são apenas alguns exemplos da representação da mulher negra no rock nacional e parece que por aqui ainda temos um longo caminho para trilhar se quisermos ocupar o nosso espaço nesse meio.
Mas vamos falar de coisa boa! Em meio a toda essa cena machista e fechada temos mulheres negras que resistem e ocupam o seu espaço no rock nacional. Algumas dessas artistas costumam misturar outros gêneros em seu trabalho que vão além do rock tradicional e outras são mais ligadas a cena do metal e punk, mas o importante é que elas existem e resistem.
Eu espero que surjam muitos outros nomes no futuro, vamos trabalhar para apoiar e divulgar o trabalho dessas minas que não se encaixam no padrão que criaram para elas, pois como diria Militia Vox: “Disgrace your Stereotype!”
O pop da cantora Mahmundi
Marcela Vale ou simplesmente Mahmundi é uma cantora e compositora carioca que vem ganhando espaço nos últimos anos com um som que mistura elementos de Synthpop, música eletrônica, pop, rock e R&B, com uma sonoridade dos anos 80.
Ela se interessa por música desde de criança, mas na adolescência teve que trabalhar um tempo em uma rede fast food enquanto subia suas músicas no finado MySpace e tentava produzir o trabalho musical de alguns amigos. Foi então que teve a oportunidade de trabalhar como técnica de som e enquanto trabalhava captando áudio, produziu sozinha os seus EPs “Efeito das Cores” e “Setembro”, ela acabou se destacando na cena indie carioca com esses trabalhos que traziam as canções “Calor do Amor” e “Vem”.
Mahmundi é uma das revelações dos últimos anos e o seu disco autointitulado Mahmundi é um dos melhores lançamentos do ano. A cantora, compositora, multi-instrumentista e produtora musical é cheia de personalidade, com um som que tem nostalgia e novidade no mesmo pacote, o seu talento é uma renovação muito bem-vinda para a música brasileira.
Mahmundi – Calor do Amor:
O post-rock de Natalia Munroe da banda Kali:
Natalia Munroe é vocalista da banda Kali, um grupo de post-rock formado em 2014 na cidade de Araraquara/SP, além dela integram o grupo Augusto Dilorenzo na bateria, Gabriel Cortilho na guitarra, Marcelo Aquino também na Guitarra, Pedro Eça no baixo e Rafael Adão nos Teclados. O som da banda Kali mistura elementos do rock progressivo experimental das décadas de 1970 e 1980.
Natalia percebeu desde de cedo que ser uma mulher negra ouvindo rock incomodava, quando ela ainda era adolescente ouviu de um garoto que não podia gostar de rock por ser negra, mas ela persistiu e hoje em dia lidera a sua própria banda.
“Quando eu tinha 13 anos, depois de sair da escola e ir para o ponto de ônibus, senti alguém puxar minha mochila com muita força. Era um garoto da minha idade também, porém maior que eu. Ele gritava com uma convicção absurda para aquela época enquanto apontava pra minha mochila dizendo ‘você é preta, não pode gostar de rock, rock foi feito para os brancos, você tem que gostar de pagode!’. Naquele momento eu só apertei a minha mochila contra o peito e queria chorar, mas eu só consegui olhar pra ele e dizer ‘eu vou gostar daquilo que eu quiser’.” – Natalia Munroe no zomzera.
Kali – Tides of Time:
O indie rock de Héloa
Héloa é uma cantora sergipana, o seu primeiro álbum “Eu” de 2016, se destaca pela multiplicidade de ritmos e gêneros que ela consegue misturar com maestria e que se encaixam perfeitamente com a sua personalidade leve e fluída. O álbum tem elementos de new wave, bossa nova, indie rock, reggae e até um pouco de música country americana. Além de cantora, Héloa também é compositora, atriz e bailarina e ela traz essa multidisciplinaridade para o seu trabalho músical.
“Minhas canções abordam os prazeres da liberdade de estar em todo e qualquer lugar sem se esquecer jamais das minhas raízes nordestinas. Isso ainda é muito forte dentro de mim.” – Héloa no Estadão.
Héloa Calei:
A headbanger Hanna Paulino
Hanna Paulino é do estado do Amapá, ela é considerada a Diva dos Headbangers da região e é vocalista da banda de Heavy Metal HidraH. Atualmente ela canta nas bandas Drusa, Voxx Voyage e Vennecy. Hanna começou a se interessar pela música quando criança e na adolescência se identificou mais com o rock e o Heavy metal. Ao longo de sua carreira ela integrou diversas bandas, entre elas a banda Senzafire, considerada uma das primeiras bandas de gothic metal do Amapá.
Com a sua banda HidraH ela ficou conhecida no meio e chegou a abrir um show para o Angra. Hanna tem uma voz marcante que se destaca seja cantando em português ou em inglês, além de suas músicas autorais, ela também faz covers de nomes como The Cure, Beyoncé e Whitney Houston.
“Comecei na música ouvindo em casa a trilha sonora do filme O Guarda Costas. Depois, por influência de um amigo da escola, comecei o contato com o rock, principalmente no Gothic Metal.” – Hanna Paulino no G1.
Hanna Paulino – Uma canção pra você:
Tati Góis e a sua banda Útero Punk
Útero Punk é uma banda de punk rock feminista formada e liderada por Tati Góis, o grupo é da Vila Brasilândia na Zona Norte da cidade de São Paulo. A Útero Punk foi formada por Tati aos 14 anos, quando ela começou a perceber as diversas formas de violência sofridas por garotas de sua idade, a ideia inicial da banda era incluir mais mulheres na cena punk da zona norte da cidade, que como a maioria das cenas de rock era inóspita para garotas.
As músicas do Útero Punk são influenciadas pelo movimento Riot Grrrl e falam de feminismo, racismo e igualdade de direitos, além de tratar de temas como a violência doméstica e sexual. Ela também divulga o trabalho e a cultura das mulheres da periferia e incentiva outras garotas a formarem as suas próprias bandas.
Ao longo dos anos a frente de sua banda Tati já bateu de frente com pessoas da cena punk que não concordavam com a forma como ela lidera a sua banda, incentivando as mulheres a ficarem na frente nos shows e mandando os homens para o fundo, além de tocar em temas como o racismo em seus shows e criticar a cena punk machista.
“Eu sou uma das poucas mulheres negras líder de bandas punks, é só olhar em volta que vocês vão perceber que a maioria no rolê é gente branca. Teve um show que a ÚTERO foi tocar e eu era a ÚNICA MULHER PRETA do lugar, aí vem gente me dizer que eu estou exagerando que não é bem assim e blá blá blá… Eu bato de frente, eu reivindico piso o pé e não vou concordar com o opressor jamais, quem pode falar da luta da mulher negra é a mulher negra e mais ninguém, ponto final.” – Tati Góis no One Degrau.
Útero Punk – Cotas:
Chegamos ao final do nosso especial sobre mulheres negras no rock, ao longo dessa investigação aprendemos que a presença da mulher negra no rock sempre existiu, mas foi apagada ou recebeu menos atenção e crédito. As mulheres que continuam fazendo o seu trabalho apesar das barreiras e preconceito que enfrentam merecem ser conhecidas e celebradas.
Continuaremos honrando os nomes de outras mulheres que fizeram história e não receberam o devido crédito pelo seu trabalho, tanto no Brasil quanto no mundo e seguiremos divulgando o trabalho das mulheres que existem na cena e merecem atenção. Para finalizar, deixo aqui as palavras da rainha da guitarra Lady Bo:
“Eu não sou uma artista que faz cópias nem sou filha de alguém famoso. Eu trilhei o meu caminho muitos anos atrás para provar que eu posso sim fazer isso. Me veja voar!” – Lady Bo.
Ouça a playlist especial Mulheres Negras no Rock:
Leia os outros posts do especial:
Mulheres Negras no Rock: Parte 1 – De Sister Rosetta Tharpe ao esquecimento
Mulheres Negras no Rock: Parte 2 – Tina Turner, Odetta e os anos 1960
Mulheres Negras no Rock: Parte 3 – Betty Davis e os anos 70
Mulheres Negras no Rock: Parte 4 – Poly Styrene e o punk rock
Mulheres Negras no Rock: Parte 5 – Grace Jones e as cantoras dos anos 80
Mulheres Negras no Rock: Parte 6 – De Lisa Fischer ao rock alternativo dos anos 90
Mulheres Negras no Rock: Parte 7 – Tamar-kali e a renovação nos anos 2000
Mulheres Negras no Rock: Parte 8 – Britanny Howard e os novos nomes
Mulheres Negras no Rock: Parte 9 – Lady Bo e as guitarristas
Fontes:
https://zomzera.wordpress.com/2016/07/13/a-mulher-no-rock/
http://deliriumnerd.com/2017/07/28/mahmundi/
http://afropunk.com/2017/06/new-music-brazil-based-indie-rock-artist-heloa-transforms-world-around-unique-eu-soundcheck/
http://cultura.estadao.com.br/noticias/musica,em-eu-heloa-faz-contraste-interessante-entre-sao-paulo-e-sergipe,70001729469
https://whiplash.net/materias/biografias/171090-hidrah.html